Round 6, Os Contratos E O Direito Brasileiro

No último dia 17/09 estreou no Brasil a série sul coreana Round 6 produzida pela Netflix que em pouco tempo se tornou a série mais vista da história da plataforma de streaming, suscitando inúmeros debates nas redes sociais.

A série conta a história de pessoas totalmente envidadas que aceitam participar de um jogo mortal com a promessa de um prêmio milionário em dinheiro no valor de 45,6 bilhões de Wons equivalente a quase R$ 209 milhões, um verdadeiro prêmio da megasena.

Longe de adentrar nos polêmicos debates sociais, políticos e filosóficos da série, uma questão chamou bastante minha atenção, os contratos celebrados entre as personagens no desenrolar da série e seus possíveis reflexos (consequências) no mundo jurídico.

O primeiro contrato, logo no início do primeiro episódio (11m38s), é celebrado entre Seong Gi-Hum (protagonista da série) e um agiota, a quem ele deve dinheiro. Depois de ter sido perseguindo pelos capangas do mafioso e encurralado em um banheiro, apanhar e ser ameaçado, o protagonista é obrigado a assinar com o próprio sangue um contrato intitulado de “Renúncia de Integridade Física”, autorizando o mafioso a lhe extrair um rim em caso de não pagamento da dívida dentro do prazo de um mês.

O segundo, também no primeiro episódio (40m22s), é celebrado entre os participantes e os organizadores do jogo intitulado “termo de consentimento” que possuía três cláusulas, bastante simples, são elas: i) o jogador não pode parar de jogar; ii) quem se recursar a jogar será eliminado; iii) a maioria decide se quer encerrar os jogos.

É fato que a série se passa na Coreia do Sul que pode ter leis bastantes distintas e mais flexíveis das que vigoram no Brasil. Todavia, em um exercício de abstração, imaginemos que esses contratos tenham sido celebrados no Brasil, será que seriam considerados legais?

Não há dúvida de que os dois contratos são completamente ilegais, e, portanto, nulos sob a ótica do direito brasileiro, mas por quais motivos? É o que pretendemos analisar mais adiante, sem pretensão de esgotar o tema. É possível também, guardadas as devidas proporções, que as conclusões aqui expressadas, possam auxiliar as pessoas comuns a identificar algumas armadilhas muito comuns no dia a dia no que concerne a celebração de contratos.

O contrato, para o direito brasileiro, é um negócio jurídico pelo qual duas ou mais pessoas, manifestam e harmonizam suas vontades, visando a criação, modificação ou extinção de direitos e obrigações de cunho patrimonial.

Alguns princípios jurídicos norteiam a validade e eficácia dos contratos, dentre os quais os principais são: o princípio da autonomia privada que se traduz na manifestação livre da vontade dos particulares na momento de celebração do contrato, desde que dentro dos limites impostos pela lei; o princípio da função social no sentido de que o contrato deve ser interpretado de acordo com o contexto da sociedade no qual está inserido; o princípio da força obrigatória dos contratos que se consubstancia na ideia de que o contrato faz lei entre as partes, obrigando os contratantes ao cumprimento integral do que ficou pactuado; o princípio da boa-fé que exige dos contratantes uma postura de lealdade, respeito, cooperação e equidade entre si na celebração dos contratos.

Aliado a esses princípios jurídicos os contratos ainda deve possuir os seguintes elementos para ter validade jurídica: i) os contratantes devem ser capazes de exercer pessoalmente os atos da vida civil (agente capaz); ii) a manifestação da vontade deve ser livre, ou seja, sem vícios; iii) o objeto (conteúdo) do contrato deve ser lícito (não contrário a lei, moral e os bons costumes), possível (objeto de ser concretizável) e determinado (coisa certa) ou determinável (coisa incerta, identificado pelo gênero e quantidade) e; em algumas hipóteses iii) ter forma prescrita ou não proibida em lei.

A ausência de quaisquer desses elementos invalida o negócio jurídico (contrato). Ou seja, o contrato é considerado nulo, sem validade, consoante os termos dos artigos 166 (incisos I a VII) e 167 ambos do Código Civil.

O contrato também pode ser anulável se o agente for relativamente incapaz (v.g, dos maiores de 16 anos e menores de 18 anos) ou se ocorrer um dos vícios de consentimento, tais como, erro, dolo, coação, estado de perigo, lesão (art. 171, incisos I e II, CC) ou os vícios sociais da simulação e da fraude contra credores (art. 167, CC).

Feita essas digressões introdutórias, passemos a analisar cada um dos contratos que aparecem na série identificando suas ilegalidades.

Com relação ao primeiro contrato, observa-se que está presente o elemento da capacidade na medida em que as pessoas envolvidas (Seong Gi-Hum e o agiota) são capazes de exercer os atos da vida civil, já que não são menores de 18 anos (absolutamente – menores de 16 anos (art. 3º, CC) ou relativamente incapazes) e não sofreram processo interdição, por serem ébrios habituais, viciados em tóxicos, pródigos ou em virtude de não puderem exprimir sua vontade (art. 4º, CC, relativamente incapazes).

No entanto, a manifestação da vontade (consentimento livre), outro elemento essencial do contrato, está claramente viciada, visto que Seong GI-Hum não assina o contrato de forma livre e espontânea vontade, já que o faz por medo de que o agiota lhe tire a vida. Nesse sentido, parece inquestionável que entre escolher a morte e a extração compulsória de um rim, é preferível o segundo.

Ou seja, a consentimento no caso em questão foi obtido, por meio de uma coação física e moral imposta pelo agiota ao obrigar Seong GI-Hum a renunciar a sua própria integridade física, oferecendo como garantia do pagamento de uma dívida um órgão tão importante do seu próprio corpo.

Nesse aspecto, o contrato é anulável.

Isto porque, no direito brasileiro a coação disciplinada no artigo 151 do Código Civil se caracteriza como vício de consentimento ensejando a anulabilidade do contrato nos termos do artigo 171, II do mesmo diploma legal.

Contudo, a lei prevê um prazo de 4 (quatro) anos contados, no caso da coação, do dia em que ela cessar. (art. 178, I, CC) para que a parte lesada provoque o Poder Judiciário para anulação do contrato. Ultrapassado esse prazo, ocorre a convalidação do vício do consentimento e o que num primeiro momento era um contrato invalido passa a ser válido do ponto de vista jurídico.

Superada essa questão, ainda que não estive presente o vício do consentimento, quanto ao objeto (outro elemento essencial) o contrato seria nulo (art. 166, II, CC), visto que a lei proíbe expressamente a celebração de contratos que envolvam a disposição do próprio corpo, quando importar em diminuição permanente da integridade física, ou contrariar os bons costumes. (art. 13, caput, CC)

É, justamente, o caso do contrato ora analisado que prevê como garantia do pagamento da dívida a possibilidade de o credor extrair os rins do devedor em caso de inadimplemento da dívida. A legislação busca proteger a dignidade da pessoa humana e evitar que as pessoas, principalmente as mais envidadas, renunciem ao seu direito à personalidade. Não por outro motivo é que os direitos da personalidade são irrenunciáveis e inalienáveis no direito brasileiro. (art. 11, CC)

Noutro giro, é importante mencionar que a doação de um órgão somente é permitida para transplante entre cônjuges ou parentes consanguíneos até o quarto grau, sempre de forma gratuita, mediante autorização judicial, nos termos do art. 9º da Lei 9.434/97 (Lei que trata dos transplantes de órgãos).

Nesse sentido, por qualquer aspecto que se analise o contrato firmado entre Seong GI-Hum e o agiota é possível constatar a violação de diversos princípios jurídicos contratuais, dentre eles, a dignidade da pessoa humana, o princípio da função social do contrato, o princípio da boa-fé.

Com relação ao segundo contrato firmando entre os participantes e os organizadores do jogo não há maiores problemas quanto à capacidade, já que, a priori, todos os envolvidos são plenamente capazes de exercer os atos da vida civil.

Nesse caso, o vício também está no consentimento pois os jogadores são dopados, levados a um lugar completamente desconhecido, no qual lhe são passadas informações imprecisas sobre as regras, induzindo-os, sobre extrema pressão psicológica, a aderir a um jogo que os levará apenas a dois destinos possíveis: a vitória ou a morte.

Ao que parece o consentimento foi obtido, por meio de artifício ardiloso empregado para enganar os participantes, com intuito de obter benefício próprio, ou seja, mediante o que o direito brasileiro conceitua como dolo. Isto porque, os organizadores lucram com o jogo, vendendo-o a uma plateia cativa chamada de VIP´s;

No direito brasileiro o dolo também se caracteriza como vício de consentimento ensejando a anulabilidade do contrato nos termos dos artigos 145 e 171, II do Código Civil.

Assim como a coação, a parte lesada precisa acionar o Poder Judiciário para obter a anulação do contrato dentro de um prazo máximo de 4 (quatro) anos, contados, do dia em que se realizou o negócio jurídico. (art. 178, II, CC), sob pena de convalidação do vício.

Outro aspecto que deve ser levado em consideração são a nulidade das três cláusulas constantes do termo de consentimento, quais sejam, i) o jogador não pode parar de jogar; ii) quem se recursar a jogar será eliminado; iii) a maioria decide se quer encerrar os jogos. Estasparecem simples e objetivas, mas representam verdadeira armadilha aos jogadores.

A primeira cláusula “o jogador não pode parar de jogar” não permite que o jogador desista do jogo, o que é manifestamente ilegal, já que ninguém é obrigado a manter contrato que lhe seja desfavorável, consequência da liberdade ampla de contratar.

A segunda cláusula “quem se recursar a jogar será eliminado” é nula, porque não deixa claro de que forma se dará a eliminação. Os participantes só descobrem o significado de “eliminado” – morte – quando o jogo já teve início e eles já aderiram ao contrato. Nesse sentido, há clara violação do princípio da boa-fé consubstanciado na necessidade de que os contratantes guardem entre si, os deveres da lealdade, cooperação, respeito e informação.

No contrato não há espaço para cláusulas dúbias, de sentido duvidoso, que possam causar insegurança jurídicas aos contraentes. É, por esta razão que a lei prevê que em tais hipóteses, a intepretação das cláusulas contratuais deve se dar no sentido mais benefício ao contratante que não redigiu o documento. (art. 113, §1º, inciso V do Código Civil).

Como já mencionado, ainda que os jogadores tivessem conhecimento de que o significado da expressão eliminado fosse morte, o contrato, ainda assim, seria nulo na medida em que o direito brasileiro veda a celebração de contratos que envolvam a disposição do próprio corpo, quando importar em diminuição permanente da integridade física, ou contrariar os bons costumes. O direito a vida é também um direito da personalidade, portanto, irrenunciável e inalienável.

A terceira cláusula “a maioria decide se quer encerrar os jogos” é nula pelos mesmos motivos da primeira, pois mitiga a liberdade de escolha do jogador, diluindo-a em um grupo grande e bastante heterogêneo. A liberdade individual deve ser irrestritamente respeitada já que o direito envolvido é o da personalidade cujo exercício não pode sofrer limitação voluntária.

A conclusão, ao se analisar os contratos mencionados, é que as pessoas devem ter máxima atenção na hora de celebrar um contrato, desde aqueles que envolvam negócios mais simples aos mais complexos.

As razões pelas quais um contrato está sendo eventualmente celebrado devem estar muito claras na cabeça dos contratantes, nenhum contrato deve ser celebrado sem uma boa e tranquila reflexão. A leitura cautelosa de todas as cláusulas contratuais é imprescindível e as dúvidas em relação a qualquer uma delas devem ser sanadas antes da celebração.

Quanto mais clara e adequada as informações que os contratantes conseguirem obter sobre os direitos e deveres envolvidos tão maior será a segurança jurídica e menor será a chance de arrependimento ou frustração com as consequências jurídicas envolvidas no pacto.

Esse melhor entendimento sobre os prós e contra dos termos do contrato, nem sempre consegue ser obtido pelos próprios contratantes, motivo pela qual se deve buscar um profissional habilitado, no caso um advogado de confiança para avaliar todos os riscos envolvidos na celebração de um contrato, a fim de gerar a maior segurança possível ao caso.

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